A Medicina é uma ciência de caráter experimental. Isso porque as doenças se manifestam de forma diversa em cada organismo, bem como os tratamentos e medicamentos fazem efeitos diferentes em pessoas diferentes. Por isso, a arte da Medicina está em experimentar e descobrir tais efeitos. E se não é obtido o resultado mais desejado, não significa que o médico errou.
Afinal, o médico não tem obrigação de sempre curar as doenças. Não se pode prometer que os tratamentos vão dar certo. O médico tem o dever de usar toda a técnica e todo conhecimento disponível, conforme o estado atual da ciência médica, para tratar o paciente da melhor forma, conforme o consentimento deste. Mas o médico não tem poder de controlar a evolução das doenças, os efeitos colaterais, nem o comportamento do próprio paciente que interfere no resultado do tratamento.
Quando acontece erro médico é porque o profissional agiu com culpa, ou seja, ele não quis cometer o erro, não quis prejudicar o paciente de forma intencional, mas agiu de certa forma equivocada que causou algum mal ao paciente. Esse mal pode ser um dano à saúde ou integridade física, mas pode ser também um dano psicológico, e até o óbito.
Existem três modalidades de culpa, que são três formas de agir que podem levar ao erro médico. Vamos explorar cada uma a seguir:
Negligência: a mais comum e fácil de acontecer. É quando o médico falta com atenção, precaução e cuidado. Não necessariamente o médico faz alguma coisa. Na maioria das vezes, ele deixa de fazer. Deixa de prestar a assistência que era devida, deixa de se importar com o paciente, ou até mesmo abandona o paciente.
Imprudência: já a imprudência é quando o médico age sem cautela, de forma precipitada, por exemplo realizando um procedimento que não tem indicação ou respaldo científico, colocando o paciente em risco sem necessidade, e sem se importar com as consequências.
Imperícia: por fim, a imperícia ocorre quando o médico se propõe a fazer algo, algum tratamento ou procedimento o qual não é recomendado, para o qual ele não possui a experiência ou conhecimento necessário, não é capacitado para fazer, ou faz sem seguir as técnicas adequadas.
Resumindo: negligência é não fazer o que deveria ser feito, imprudência é fazer o que não deveria ser feito, e imperícia é fazer mal o que deveria ser bem feito. Esses três tipos de culpa muitas vezes se confundem porque ocorrem ao mesmo tempo.
No processo judicial, ou no ético-profissional, para definir se houve um erro médico, tem que ser levado em consideração as condições do atendimento, a necessidade de ação e os meios empregados. Ou seja: onde foi esse atendimento? Foi num posto de saúde com uma estrutura precária ou numa clínica super moderna onde tem os melhores equipamentos? Era um médico recém-formado ou um especialista? O médico fez o que ele deveria ter feito, o que era de se esperar naquela situação? Ele usou todos os recursos que tinha disponíveis? São perguntas como essas que devem ser feitas.
Retardo no diagnóstico após acidente de trânsito
O primeiro exemplo aqui trazido refere-se a uma mulher de 47 anos que sofreu acidente de trânsito pois foi atingida por um veículo enquanto dirigia uma motocicleta. Foi socorrida pelo SAMU e levada ao hospital, onde foram realizados raio-X de tórax, coluna cervical, dorsal e arcos costais. Ela ficou em observação durante 6 horas com medicação para dor, depois foi examinada por um ortopedista que viu as imagens das radiografias, disse que estava tudo bem, e deu alta. Contudo, o laudo dessas radiografias só foi emitido dois dias depois, quando a paciente já encontrava-se em casa, em repouso. O laudo apontou “redução da altura do corpo vertebral de T6” e sugeriu prosseguir a investigação com tomografia.
Uma semana após o acidente, a paciente continuou sentindo muitas dores, então retornou ao hospital, onde apenas lhe foram administrados mais medicamentos. Sequer foi citado o laudo das radiografias. Três dias depois, como não havia melhorado, ela procurou atendimento em outro lugar, no sindicato de sua profissão, onde um médico do trabalho disse que provavelmente ela tinha fraturado a coluna e que deveria voltar a procurar o médico que a atendeu no dia do acidente.
Assim ela fez, e aquele ortopedista então solicitou uma tomografia, que apontou “fratura por acunhamento do corpo vertebral de T6 e abaulamento do platô superior de T9”. Ela foi encaminhada então para um cirurgião que solicitou uma ressonância magnética que constatou múltiplas fraturas. Desse modo, 21 dias após o acidente a paciente foi submetida à cirurgia de artrodese da coluna, descompressão medular, osteotomias, enxerto ósseo e radioscopia. A cirurgia transcorreu normalmente, com sucesso, mas a paciente ficou com muitas limitações nos movimentos e incapacitada para voltar a trabalhar.
Essa paciente ingressou com um processo contra o hospital e foi realizada uma perícia judicial que constatou que houve retardo no diagnóstico e que, apesar disso não ter alterado o prognóstico nem ter causado mais sequelas à paciente do que ela já ficaria em razão do acidente sofrido, lhe causou muita dor e sofrimento.
Houve falha no atendimento do hospital porque não foi correto a paciente ter recebido alta com fraturas não diagnosticadas, e porque mesmo ela tendo retornado ao hospital com dores persistentes, os médicos não verificaram o laudo das radiografias e nem solicitaram exames complementares. Como esse laudo ficou pronto dois dias depois do acidente, a paciente deveria ter sido orientada a retornar para investigar as fraturas, mas nem quando a mesma voltou ao hospital devido às dores isso foi feito. Ela teve que retornar uma terceira vez para então chegarem ao diagnóstico.
Considerando tudo isso, e que não era um diagnóstico difícil que pudesse justificar a demora, o hospital foi condenado a pagar 20 mil reais por danos morais, ou seja, pelo abalo psicológico e pelo descaso que a paciente sofreu. Importante observar que nesse caso não houve dano à saúde da paciente. Porque mesmo que tivessem realizado o diagnóstico correto logo no início, o resultado teria sido o mesmo, a conduta seria a realização da mesma cirurgia, e as sequelas do acidente seriam as mesmas, mas a paciente não teria sentido dor por tanto tempo de forma desnecessária. Esse caso é um exemplo de negligência, de não dar a devida atenção e cuidado ao paciente.
Cirurgia realizada sem necessidade em paciente com lúpus
Uma paciente portadora de lúpus eritematoso sistêmico e síndrome de Sjögren passou a apresentar quadro de coceira, vermelhidão e ardência nas mãos e braços, que não melhorou com tratamento dermatológico. Com o aumento da dor e fraqueza na perna, a paciente compareceu ao hospital, onde foi internada para investigação. Após ser medicada e realizar vários exames, incluindo ressonância magnética da coluna cervical, o médico diagnosticou um tumor intramedular e informou que seria necessária realização de cirurgia imediatamente, a fim de evitar piora da compressão medular. Contudo, durante a cirurgia, o neurocirurgião encontrou na medula da paciente algo com aspecto de inflamação, e não de tumor. Com o resultado do exame anatomopatológico, concluiu-se como diagnóstico quadro de mielite transversa, cujo tratamento dá-se por medicamentos, sem qualquer necessidade de cirurgia.
Em razão disso, o médico e o hospital foram condenados ao pagamento de indenização pelo dano moral que a paciente sofreu, considerando que o diagnóstico de tumor acompanhado dos riscos de uma cirurgia realizada sem necessidade, bem como a permanência na UTI, lhe causaram angústia e sofrimento. A decisão judicial foi embasada pelo laudo pericial, que constatou que não houve a completa investigação da doença autoimune da paciente no momento de sua internação, e que não houve piora gradativa do exame neurológico no período anterior à cirurgia, que justificasse a urgência da intervenção na coluna cervical, mas sim melhora do quadro das lesões em pele e da parestesia. Observou o perito que o termo “processo expansivo” constante do laudo de ressonância magnética, no contexto clínico da doença preexistente, não deve ser confundido com “tumor”, mas o chamado “efeito tumefativo” localizado, decorrente de inchaço do processo inflamatório. Além disso, o próprio laudo de imagem descreve como “infecção” e não tumor. Assim, pode-se concluir que o médico agiu de modo imprudente ao submeter a paciente a uma cirurgia sem necessidade.
Intubação orotraqueal inadequada
Uma paciente idosa sofreu Acidente Vascular Cerebral, e quando foi atendida no pronto socorro, a mesma já não respirava, por isso foi realizada intubação orotraqueal. Acontece que o tubo foi inserido pelo médico no esôfago, o que fez com que a insuflação de ar causasse ruptura do estômago, e a paciente foi a óbito. A certidão de óbito descreveu como causa da morte: abdome agudo perfurativo, distúrbio de coagulação, choque hipovolêmico e AVC isquêmico.
A paciente já apresentava fatores de risco, como hipertensão, diabete, dislipidemia, doença pulmonar obstrutiva crônica e infarto agudo do miocárdio prévio. Então, não há como saber se ela teria sobrevivido ao AVC. Mas, embora ela pudesse ter evoluído ao óbito devido a outras causas, com certeza a intubação inadequada contribuiu para a morte, o que é um exemplo de imperícia. Por isso, o médico e o hospital foram condenados a pagar 300 mil reais para os familiares da falecida.
Paraplegia após cirurgia com anestesia
Uma paciente foi submetida a uma cirurgia eletiva para a retirada de um endometrioma na parede abdominal, procedimento que foi realizado sob raquianestesia, sem nenhuma intercorrência. Acontece que a paciente perdeu o movimento das pernas após essa cirurgia, e passou a se locomover em cadeira de rodas. Ela passou por vários hospitais e fez vários exames para tentar descobrir a causa, mas tudo parecia normal, e somente uma ressonância mostrou “edema do tecido subcutâneo profundo em média lombar de L1 a L4”. Não foram encontradas outras alterações fisiológicas ou morfológicas que explicassem a paraplegia.
O caso foi analisado por um perito judicial, que concluiu que tanto a cirurgia como a anestesia foram realizadas de forma correta, conforme a boa prática médica, e que não houve nenhum erro. O perito disse ainda que a presença do edema pode ocorrer em decorrência da própria anestesia, mas que isso não é considerado uma complicação. Que a paraplegia não teve correlação anatomoclínica e nem radiológica com a anestesia ou a cirurgia realizada.
Esse é um caso em que, embora tenha acontecido algo muito ruim à paciente, por mais triste que seja, não foi culpa do médico. Mas sim uma fatalidade, coisa que não poderia ter sido prevista e nem evitada. E existem muitos casos parecidos com esse, em que não existe culpado.
Mas há também os casos em que quem comete erro é o paciente, que demora demais para procurar atendimento, que não comparece às consultas, não segue as recomendações médicas, e até mesmo foge do hospital.
Dever de informação
Um paciente passou pelo procedimento de retirada da próstata, devido ao diagnóstico de hipertrofia da próstata e, após a cirurgia, passou a sofrer incontinência urinária e impotência sexual, e processou o médico por causa disso. Mas se constatou que não houve erro nenhum durante a cirurgia. O único erro do médico foi não ter conversado antes com o paciente sobre os riscos da cirurgia, porque incontinência urinária e impotência sexual são consequências normais desse tipo de procedimento, contudo o paciente não estava ciente. Se ele soubesse disso, talvez tivesse optado por outro tipo de tratamento. E foi pelo descumprimento desse dever de informação que o médico foi condenado a pagar indenização.
Para todo tratamento ou procedimento que é proposto, o médico deve explicar de forma muito clara e compreensível para o paciente os riscos envolvidos e possíveis efeitos indesejados, que devem constar também num termo de consentimento a ser assinado pelo paciente.
Conclusão
Por mais capacitado que seja, o profissional da saúde está diariamente submetido a riscos, uma vez que o objeto de seu trabalho é a saúde de uma pessoa. Assim, para minimizar os riscos judiciais, contar com uma assessoria jurídica especializada pode ser a melhor alternativa. Seja para fornecer modelos, orientar boas práticas jurídicas, tirar dúvidas cotidianas ou mesmo para acompanhar em caso de ocorrência de um evento que possa resultar em processo, a consultoria jurídica preventiva pode ser uma grande aliada para o sucesso e a paz do profissional. E você que é médico ou outro profissional da saúde já passou por alguma situação complicada em sua prática profissional?