Médico é denunciado criminalmente após prescrever antiepiléptico e paciente evoluir a óbito com Síndrome de Stevens-Johnson

Um médico neurologista pediátrico foi denunciado pelo Ministério Público por homicídio culposo na modalidade imperícia, após ter supostamente prescrito medicamento em dose excessiva.

O paciente era um adolescente de 13 anos que sofria com epilepsia, tendo convulsões de difícil controle. Sua mãe o levou ao neurologista que prescreveu Valproato de sódio, mas não foi suficiente para controlar as crises. Por isso, em nova consulta, acrescentou Lamotrigina ao tratamento, na dose de 100mg 2x ao dia. 

Ocorre que, após duas semanas desde o ajuste na medicação, o paciente precisou ser internado apresentando dor, bolhas, descamação e placas na pele, aparentando uma reação alérgica. Foi diagnosticado com Síndrome de Stevens-Johnson em estado gravíssimo, precisou ser entubado, recebeu infusão de plasma, plaquetas e imunoglobulina, permanecendo sob cuidados intensivos. 

Foi transferido da UTI pediátrica para a de adultos onde passaria por diálise, no entanto, foi a óbito antes disso. Na declaração constou como causa da morte: choque distributivo, necrólise epidérmica tóxica, farmacodermia, e epilepsia.

A família do paciente já havia sido informada sobre a gravidade da situação e o prognóstico desfavorável. Porém, inconformada, a genitora registrou Boletim de Ocorrência acusando o médico de ter prescrito a Lamotrigina em dose acima do permitido pela bula, o que teria causado a síndrome e então a morte. 

O paciente já apresentava quadro extremamente gravoso, em choque refratário, instável (não mantinha a pressão arterial), com anúria e pupilas midriáticas (não fotorreagentes), circunstância essa que evoluiu para parada cardiorrespiratória e, mesmo com a execução de manobras de ressuscitação, o paciente foi a óbito.

Após investigações preliminares, o Ministério Público ofereceu denúncia por homicídio culposo (quando não há intenção de matar) argumentando que “em se tratando de paciente em fase de ajuste de medicação, caberia a denunciada adotar a cautela recomendada pelo protocolo de segurança e introduzir o remédio em doses iniciais mais brandas, atentando-se,  principalmente, para o fato de que a vítima já fazia uso da medicação Depakene (valproato de sódio)”.

Na bula do medicamento consta “nos pacientes recebendo valproato sódico, a dose inicial de Lamotrigina deve ser de 25 mg, em dias alternados, por duas semanas. Depois disso, a dose usual de manutenção para se obter uma resposta ótima é de 100 a 200 mg/dia”.

Portanto, o médico teria desobedecido a cautela exigida no protocolo de segurança e na bula do remédio, pois a quantidade receitada inicialmente (200 mg por dia) é maior que aquela indicada para os pacientes que não fazem uso de valproato sódico (50 mg por dia), e muito superior a dosagem recomendada para a vítima, que já fazia uso de valproato sódico (25 mg, em dias alternados).

“Em síntese, a vítima deveria receber 25 mg em dias alternados (equivalente a 12,5 mg por dia), mas o denunciado lhe receitou 200 mg por dia (dois comprimidos de 100 mg ao dia). Logo, conclui-se que a vítima ingeriu, durante aproximadamente 15 (quinze) dias seguidos, uma quantidade diária 16 vezes superior do que a recomendada na bula do remédio.” Assim concluiu o Ministério Público. 

Muito embora o laudo do IML – Instituto Médico Legal já tivesse desde o início descartado a ocorrência do crime. Segundo o laudo: “considerando que a Fisiopatologia da Síndrome de Stevens-Johnson é mediada pelas características imunológicas do indivíduo e não pelo efeito tóxico direto da substância, definindo este evento adverso como Idiossincrático, Imprevisível e Imponderável, a Morte não foi causada por culpa médica”.

Na bula da Lamotrigina consta que um pequeno número de pessoas que tomam o medicamento apresenta uma “reação alérgica ou reação cutânea potencialmente grave, que pode evoluir para problemas mais graves se não for tratada. Reações alérgicas graves são raras (podem afetar até 1 em 1.000 pessoas).− Estes sintomas são mais prováveis de acontecer durante os primeiros meses de tratamento com lamotrigina, especialmente se a dose for muito alta ou se a dose for aumentada muito rapidamente, ou se lamotrigina for tomado com um medicamento chamado valproato. Reações cutâneas graves são mais comuns em crianças. Os sintomas dessas reações alérgicas incluem erupções cutâneas ou vermelhidão, que podem evoluir para reações cutâneas graves incluindo erupção cutânea generalizada com bolhas e descamação da pele, particularmente à volta da boca, nariz, olhos e genitais (eritema multiforme e síndrome de Stevens-Johnson)”.

Em sua defesa, após analisar todo o prontuário, o médico defendeu-se argumentando que a síndrome poderia ter ocorrido em decorrência de infecções virais ou bacterianas, e que havia registros de o paciente ter apresentado dor de garganta e ter sido medicado anteriormente com decadron e dipirona.

Disse que atuou estritamente dentro dos parâmetros estabelecidos pela ciência médica e pelas boas práticas da sua profissão, observou todas as normas técnicas e éticas vigentes, agindo com a cautela e a diligência que a situação exigia, que em nenhum momento se desviou dos procedimentos recomendados ou incorreu em qualquer erro profissional, demonstrando competência e responsabilidade no exercício de suas funções. 

Durante a instrução processual foram ouvidos como testemunhas diversos profissionais médicos, que reforçaram a conclusão da perícia e trouxeram dúvida razoável acerca do nexo de causalidade entre o valor da dose administrada de Lamotrigina e o desencadeamento da síndrome de Stevens-Johnson. Restou duvidosa a constatação de que tal conduta tenha sido efetivamente a causa do óbito. O conjunto probatório não revelou, com a necessária certeza, a responsabilidade penal do réu pelo infeliz óbito do paciente.

“A Síndrome de Stevens-Johnson não é resultado do efeito tóxico direto da medicação. Surge um quadro diverso da ação farmacológica da substância (idiossincrasia). Essas reações não são previsíveis a partir das ações farmacológicas conhecidas da medicação e não se relacionam à dose, podendo ocorrer mesmo com doses mínimas. A Fisiopatologia desta Síndrome envolve mecanismos imunológicos, ou seja, a resposta particular deste indivíduo a substância.” Assim explicou uma das testemunhas. 

Portanto, concluiu-se que “essa reação (síndrome) não é considerada decorrente da alta dose da medicação, mas sim de fatores próprios do próprio paciente. Não é todo o paciente que se der uma dose alta, desenvolverá síndrome de Stevens-Johnson. Alguns pacientes tomaram doses cavalares desses medicamentos e não sofreram a síndrome, não vieram à óbito. A síndrome de Stevens-Johnson pode ser desencadeada por diversos fatores. No caso do paciente em questão, está demonstrado que ele passou a ter os sintomas a partir da introdução da Lamotrigina. As características próprias da vítima influenciam nas reações. É muito provável que tenha sido o medicamento Lamotrigina que causou essa condição, mas a síndrome independe do valor da dose aplicada”.

Assim foi confirmado que é comum o uso de Lamotrigina com Depakene, que não há nenhum exame que conseguisse atestar a possibilidade de Stevens-Johnson, uma síndrome muito rara de acontecer, sobre a qual não é possível definir qual foi a droga causadora do evento. 

O diretor técnico do hospital declarou que “não há procedimento para determinar qual a causa da síndrome. É independente de dose. É comum receitar medicamentos com dosagem superior à indicada na bula, a depender da situação. Uma crise epiléptica gera perda de milhões de neurônios e pode levar ao óbito do paciente, de modo que há necessidade de intervenção medicamentosa no intuito de cessar as crises e preservar a própria vida do paciente com epilepsia, e foi isso que o réu fez no caso. A síndrome de Stevens-Johnson não tem relação com a quantidade de dose ministrada de determinado medicamento, mas com a substância em si”.

Diante disso, o próprio Ministério Público em suas alegações finais requereu a improcedência da denúncia: “No caso, como dito, não só a perícia oficial, mas notadamente os depoimentos das testemunhas de defesa – médicos experientes e ouvidos sob o compromisso de dizer a verdade – trouxeram obstáculo ao reconhecimento induvidoso do nexo causal entre a conduta da ré e o resultado obtido, ao passo que a condenação criminal exige certeza quanto a este elemento do tipo”.

O réu por sua vez “justificou sua conduta médica pela necessidade de conferir intervenção urgente e eficaz nas recorrentes crises epilépticas que estavam infligindo enorme sofrimento no paciente e em sua família e que lhe traziam sério risco de lesão à integridade física e à própria vida. A conduta se deu justamente no sentido de salvaguardar a saúde do adolescente”.

Embora o médico tenha prescrito a Lamotrigina em dose superior à indicada na bula, os relatos das testemunhas foram no sentido de que é comum a prescrição do medicamento acima da dose indicada pelo fabricante. E que apesar da literatura médica prever a possibilidade do medicamento Lamotrigina desencadear a síndrome Stevens-Johnson, não é possível constatar se a ingestão do medicamento foi o que causou a síndrome. Referida condição é efeito raro da utilização do medicamento, cuja ocorrência é improvável.

Nestes termos a sentença foi de absolvição:

“Embora existisse consenso a respeito da probabilidade de a síndrome Stevens-Johnson ter sido desencadeada pelo uso da medicação Lamotrigina, ante o aparecimento dos sintomas após o início do uso, todos informaram que não é possível ter essa certeza, uma vez que diversos medicamentos, vírus e outros fatores podem ter servido como gatilho.

(…)

O adolescente padecia de crises convulsivas diariamente, cada uma apta a ensejar o perecimento de milhares de neurônios, aproximando-o progressivamente de estado vegetativo, além do que, cada episódio o colocava em risco de morte. Conforme relato testemunhal, pela experiência médica, a ocorrência de crises convulsivas a cada dois ou três dias já seria suficiente para adoção de doses maiores de medicação com o intuito de evitá-las. Então, não é possível considerar imperita a conduta do réu, que ministrou o medicamento de acordo com o peso do adolescente, embora acima da dosagem inicial da bula, buscando evitar a reiteração das crises convulsivas, mormente porque a ocorrência da síndrome é extremamente rara, acometendo cerca de 2 a 6 pessoas por milhão por ano.

(…)

Ademais, as doses indicadas nas bulas são valores de referência, que podem ser ou não aplicáveis aos pacientes, cabendo ao médico fazer a melhor avaliação, conforme a literatura médica e sua experiência profissional. As bulas representam sugestões terapêuticas, não sendo de seguimento obrigatório, cabendo ao profissional de saúde avaliar a dosagem adequada para cada paciente, assim como qual a conduta médica deve ser utilizada caso a caso.”

A mãe do paciente recorreu ao Tribunal de Justiça, na qualidade de assistente de acusação, porém a sentença de absolvição foi mantida: “em síntese, não se verifica na conduta da acusada qualquer indício de imperícia, uma vez que prescreveu medicamentos amplamente utilizados para o tratamento de epilepsia e não tinha como prever a reação adversa manifestada pela vítima, considerando sua raridade e a possibilidade de ser desencadeada por múltiplos fatores.”

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