Um paciente foi diagnosticado com lúpus eritematoso sistêmico e síndrome do anticorpo antifosfolipídeo, doenças autoimunes em que o organismo produz anticorpos que atacam a si próprio. Em decorrência disso, apresentou também trombocitopenia ou plaquetopenia, que é o baixo número de plaquetas no sangue. O sistema imunológico produz anticorpos contra as suas próprias plaquetas e as destrói.
Essa doença era recidivante, porque voltava a ocorrer mesmo após o tratamento e melhora dos sintomas, e também era refratária, ou seja, uma condição de difícil controle pois não apresentava boa resposta aos tratamentos usuais. O paciente em questão já havia utilizado medicamentos com glicocorticoide e imunoglobulina, e havia tido melhora inicial na contagem de plaquetas, porém logo depois voltava a ter queda. Essa condição é grave porque pode levar a sangramentos intensos e incoercíveis, até mesmo hemorragia cerebral com risco de óbito.
Diante disso, foi necessário realizar tratamento com o uso do medicamento imunobiológico e imunossupressor rituximabe, prescrito por médico reumatologista, por via endovenosa e em ambiente hospitalar. Felizmente este tratamento surtiu um bom efeito, com controle do número de plaquetas, e melhora clínica no quadro de saúde do paciente.
No entanto, após a realização de todo o tratamento que durou quatro semanas, foi surpreendido ao receber uma conta do hospital no valor de aproximadamente 60 mil reais referente ao medicamento utilizado, ao qual seu plano de saúde negou cobertura. O plano de saúde cobriu todas as demais despesas hospitalares de internação e exames, porém não autorizou cobertura ao medicamento rituximabe por ter sido utilizado de forma off label, ou seja, indicação fora da bula.
Porém essa negativa é indevida e abusiva, pois o plano de saúde é sim obrigado a cobrir os medicamentos utilizados no hospital, mesmo que de forma off label. A utilização do rituximabe consiste em terapia imunobiológica endovenosa, tratamento que é previsto no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar.
Contudo, existe uma Diretriz de Utilização, que são alguns critérios médicos, requisitos clínicos que devem estar presentes para que o plano cubra os tratamentos. Por exemplo, alguns medicamentos possuem cobertura somente para determinadas doenças. Nessa DUT não está contemplado o uso do rituximabe para tratamento de lúpus eritematoso sistêmico ou síndrome do anticorpo antifosfolipídeo, apesar disso, está previsto para tratamento de outras doenças, como a leucemia.
As indicações que constam na bula são para o tratamento de linfoma não Hodgkin, leucemia linfoide crônica, artrite reumatoide ou granulomatose com poliangite. O medicamento contém um anticorpo produzido fora do corpo e que se liga a receptores nos linfócitos B, levando à destruição dessas células.
Ocorre que quando um medicamento é aprovado para determinadas indicações, isso não implica que sejam as únicas possíveis. Outras indicações podem estar sendo, ou vir a ser estudadas, as quais, submetidas à ANVISA quando terminados os estudos, poderão vir ser aprovadas e passar a constar na bula. Estudos concluídos ou realizados após a aprovação inicial podem, por exemplo, ampliar o uso do medicamento para outra faixa etária, para uma fase diferente da mesma doença, ou para outras doenças com mecanismos de fisiopatologias semelhantes.
O médico possui liberdade e autonomia para tratar pacientes que tenham uma certa condição que, por analogia com outra semelhante, ou por base fisiopatológica, ele acredite possam vir a se beneficiar de um determinado medicamento ainda não aprovado na bula para ela, baseado na literatura e em estudos clínicos. Outrossim, o que é off label hoje, no Brasil, pode já ter uso aprovado em outro país. A classificação de uma indicação como off label pode, pois, variar temporalmente e de lugar para lugar.
Inclusive o Superior Tribunal de Justiça entende que em casos como esse a recusa de cobertura por parte do plano de saúde é abusiva, mesmo que tenha sido indicado para uso off label. O paciente pode ter direito, inclusive, a receber uma indenização por danos morais quando tiver o medicamento negado.
O paciente ingressou na Justiça e apresentou diversas evidências científicas que comprovam a eficácia do tratamento, além de inúmeras notas técnicas já elaboradas pelos Núcleos de Apoio Técnico do Poder Judiciário – NATJUS que confirmaram que o rituximabe é utilizado no tratamento de manifestações refratárias da lúpus, principalmente associado à plaquetopenia, quando falham as demais medicações imunossupressoras disponíveis.
As notas técnicas evidenciaram que o uso da medicação é propício e adequado e segue as recomendações terapêuticas internacionais, bem como ressaltaram que trata-se de um caso de urgência, com risco de lesão de órgão ou comprometimento de função.
É o profissional médico que acompanha o paciente quem melhor detém o conhecimento acerca das condições e da adequação do tratamento a ser realizado, pois estudou o caso em suas particularidades e especificidades, e é sabedor dos efeitos que o medicamento pode causar. Portanto, não cabe à operadora de plano de saúde interferir na escolha do tratamento prescrito pelo médico.
Incumbe ao médico avaliar, estudar e aplicar as evidências científicas e dados constantes na literatura médica a fim de decidir prescrever ou não determinado medicamento, uma vez que somente o médico é capaz de examinar seu paciente, exames complementares realizados, e relacionar o quadro clínico apresentado com as evidências existentes, em conjunto com seu conhecimento, experiência e habilidades técnicas especializadas.
A Lei dos Planos de Saúde (Lei n° 9.656/98) determina que os mesmos devem obrigatoriamente fornecer cobertura para tratamentos de todas as doenças listadas na Classificação Internacional de Doenças (CID) e Problemas Relacionados com a Saúde da OMS – Organização Mundial de Saúde, e que é uma exigência mínima o plano de saúde de segmentação hospitalar fornecer cobertura para medicamentos, quando prescritos pelo médico assistente, ministrados durante o período de internação hospitalar.
Algumas operadoras de planos de saúde costumam apresentar um ‘parecer técnico’ elaborado por seus próprios assessores médicos na tentativa de descredibilizar o pedido de tratamento. Isso não passa de uma indevida e impertinente intromissão no entendimento profissional do médico que presta assistência ao paciente.